segunda-feira, 27 de setembro de 2010

Primavera


Sol entrecortado de chuva marca o início da primavera e prepara a chegada do verão, numa cidade que hiberna até setembro, para despertar no calor. Um amigo diz pela internet que os pássaros de Ipanema, onde mora, enlouqueceram e começaram a cantar desesperadamente, antes mesmo de o sol nascer. Outro amigo diz que esta aflição dos passarinhos deve-se à busca das fêmeas para o acasalamento da primavera.

Num país com tão poucos traços das quatro estações, das quais apenas duas marcam realmente sua presença, os sinais da primavera trazem a agradável surpresa de assistirmos ao desabrochar das plantas, do desejo dos pássaros e ao nascimento das flores. Em Copacabana, os botões franzinos se abrem timidamente nas calçadas.

Talvez tenhamos nos esquecido do calor que fez no ano passado, antes mesmo de o verão chegar. A presença antecipada de tantos turistas, brancos e louros, ocupando a orla do mar, é um sinal do quente verão que nos espera. Eles, como os insetos alados que são atraidos pela luz, antecipam a intensidade do calor que irá fazer antes do fim do ano.

terça-feira, 21 de setembro de 2010

Publicidade sem glamour


A publicidade não é tão glamurosa como antes, parece dizer o exodo dos criativos das grandes agências americanas, que procuram em algum lugar um trabalho que lhes dê prazer. Foi o jornal Advertising Age, especializado em marketing e propaganda, quem detectou o movimento, depois de observar a fuga recente de pelo menos oito grandes estrelas das maiores agências.

Eles se queixam da falta de respeito dos clientes, que os tratam como fornecedores de commodities e não como artistas que dão vida a um produto. O conhecido ego dos criadores não suporta mais esse tipo de relacionamento. E o ego, é preciso que se reconheça, é o que mobiliza o talento.

You’re nobody’s bitch – você não é prostituta de ninguém, foi o conselho que Gerry Graf, uma daquelas grandes estrelas, recebeu de um amigo antes de deixar a Saatchi em busca de algum lugar que reconhecesse seu talento.

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

Nosferatu


Nosferatu, filho de Lilith, a primeira mulher de Adão antes de Eva, sobreviveu nos mitos criados pelo medo que habita o coração dos homens. Vivente da escuridão, transforma-se em morcego e sobrevive sugando o sangue dos inocentes.

Em 1922, o cineasta alemão Friedrich Murnau contou a sua história num filme que se transformou em um clássico do cinema de horror e deu origem a uma longa série de histórias de vampiros. Murnau inspirou-se no romance Drácula, de Bram Stocker. Ele não conseguiu obter os direitos da viuva do escritor para filmá-lo e criou a sua própria história. Nosferatu é a melhor representação do Mal jamais imaginada.

É uma personagem triste, sofre de profunda solidão e a sua vida nas sombras aterroriza muitas crianças e adultos que sofrem da síndrome de pânico. Nenhum poder o detém, a não ser a visão da cruz, o cheiro de cebolas ou uma estaca cravada no seu peito.

sábado, 11 de setembro de 2010

Políticos


Marquinhos estava ontem na rua com seu rádio nas mãos, longe dos ouvidos. O rádio é mudo mas ele não se importa e costuma postar-se na esquina de Barata Ribeiro com República do Peru escutando o que deve ser música, pois dança balançando as pernas.

Marquinhos estava seletivo, na tarde de ontem. Não xingava todos os passantes, como costuma fazer, nem se dedicava a dirigir o trânsito caótico daquela esquina. Concentrava-se nas pessoas que seguravam cartazes de propaganda política e disparava sua algaravia, de olhos esbugalhados, na direção das fotos dos candidatos.

Nas campanhas eleitorais, os políticos contratam pessoas muito pobres para se postarem em locais de grande tráfego empunhando sua propaganda. Marquinhos, indignado, ignorava os que seguravam os cartazes em frente à estação do metrô e se dirigia aos políticos que se exibiam nas fotos, esculhambando os rostos sorridentes, para os quais apontava o dedo gritando palavras que não existem. Mas era fácil imaginar o que diziam.

domingo, 5 de setembro de 2010

Ava e Frank


A história de amor e um casamento fracassado entre Ava Gardner e Frank Sinatra alimentaram as colunas de futilidades dos anos 50. Ele abandonou a mulher por ela mas, juntos, não tiveram um momento sequer de felicidade fora do sexo, se for verdade o que ela disse: “os problemas começavam entre a cama e o bidê”.

Talvez Ava fosse bela e independente demais, a ponto de virar a cabeça de homens como Mickey Rooney, Howard Hughes, Artie Shaw, Luis Dominguin e o próprio Sinatra. Ela se banhou nua na piscina da casa de Ernest Hemingway e ele deu ordens para nunca mais esvaziarem a água.

Sinatra nunca se recuperou da separação e recrutou amigos para, juntos com ele, comporem I’m a fool of want you, um verdadeiro hino à dor de corno. Vale a pena ouvir. Clique aqui.

quinta-feira, 2 de setembro de 2010

Na escuridão

O homem estava sentado numa mesa próxima, o restaurante estava cheio e ele estava só. Olhava para a frente sem mirar ninguém, o olhar era parado, o pensamento absorto, longe do burburinho. Em seu prato havia uma salada de folhas verdes. Uma taça de vinho branco, ao lado, permanecia intocada. Ele remexia as folhas com o garfo e não comia.

Era um tipo moreno de cabelos pretos e pele bem cuidada que revelava cuidadosa exposição ao sol. Os dedos que pegavam o garfo eram de unhas bem tratadas por manicure e sua roupa cinza com paletó e uma gravata discreta traduziam equilibrio e bom gosto.

Mas ele estava só, talvez como nunca estivera. Digo isto porque seu pensamento distante franzia sua testa em um vinco que parecia uma cicatriz de angústia. Ele permaneceu assim durante todo o tempo em que fiquei por ali e depois pedí a conta e saí para a rua movimentada.