quinta-feira, 28 de março de 2013

O homem prisioneiro



O impulso de sobrevivência, que deu ao homem condições para permanecer na Terra, foi sempre paralelo a seu desejo de afirmação pessoal. A visão subjetiva do mundo plantou-lhe na alma o instinto da liberdade e de não se submeter à escravidão, ao domínio de outrem, a tudo que lhe impeça de procurar a felicidade, este mito que mantém acesa a centelha da vida humana.

Viver em sociedade – “minha liberdade acaba quando começa a liberdade do outro”- limitou os espaços de afirmação pessoal dando lugar ao conformismo dos habitantes urbanos. A concentração dos poderes nas mãos de poucos provocou um novo tipo de submissão coletiva em que as órdens são transmitidas por mecanismos midiáticos onipresentes.

A internet veio significar o único, derradeiro território em que se dá a presença humana em toda a sua complexidade e também onde se pratica o exercício da liberdade que restou. O homem nunca foi tão prisioneiro, diante de um poder centralizado em oligopólios e oligarquias que lhe estabelecem limites. Mas tem diante de si espaço e meios para fortalecer a eterna luta por sua própria libertação.

quarta-feira, 20 de março de 2013

Brumas


Há uma dimensão da vida em que o real se entrelaça com o sonho e o imaginário se transforma no terreno dos mitos. Seria o que Poe imaginou como um sonho dentro de um sonho, uma região em que vida, vivência e morte, numa aparente realidade, não passariam de um delírio da loucura humana.

Os loucos, como é o caso do Marquinhos, o maluco da vizinhança, vivem sua experiência na perspectiva da sua própria percepção das coisas. Suas tentativas de organizar o trânsito, corrigir o comportamento dos outros, sua indignação diante do que lhe parece fora do lugar, tudo isso reflete o desejo de participar e viver num mundo diferente e, portanto, melhor.

São os loucos, como também acontece com alguns bêbados e outros tipos de alucinados, que chegam a perceber os reflexos de algo diferente e distinto, um território onde não existem certezas. Trata-se de um campo de névoas, brumas, sensações transmitidas por um rápido raio de sol sobre uma praia estranha.

segunda-feira, 11 de março de 2013

UTI



A sensação de sentir-se prisioneiro é causada pela impossibilidade de se levantar, ir ao banheiro ou conhecer o ambiente que nos mantem isolados. É proibido sair da cama. Os aparelhos que monitoram os sinais de vida apitam a cada dois segundos. Se você não estiver dopado, dificilmente dormirá durante a noite.

O salão é grande e dividido por cortinas em pequenos compartimentos individuais. Não dá para saber quem está preso nos outros espaços e apenas uma velhinha, lá do outro lado, no canto do salão, olha para mim atenta e demoradamente.

As enfermeiras não param de falar, conversas soltas que nada têm a ver com o que fazem naquele lugar. Uma delas diz à outra, durante a madrugada, que o paciente à minha direita caiu de um poste e quebrou a medula. Em intervalos, alguem se aproxima, faz você tomar algum remédio ou lhe aplica uma injeção. A noite é muito longa, a madrugada traz enfim um pouco de silêncio no qual se ouve cada vez mais alto o apito dos aparelhos, irritante aviso de que você permanece vivo.

quinta-feira, 7 de março de 2013

O Sertão


Estávamos no bar em  Areias, no interior da Paraiba. No rádio, Luiz Gonzaga cantava um baião cuja letra saúda o “sertão de mulher séria e homem trabalhador”. O amigo, com ironia, disse que Luiz Gonzaga há muito tempo não visitava o Sertão. Em sua frase maliciosa havia algum preconceito mas havia nela também o reconhecimento de que o Sertão havia mudado.

As imagens da seca na TV, onde se destacam as ossadas de animais mortos de sede, mostram no entanto que as mudanças não foram tão grandes assim. Estes ícones dramáticos têm permanecido os mesmos através dos anos e repetem que o fantasma da fome ainda assombra o povo sertanejo.

As cidades médias e grandes do Brasil obedecem a um mesmo plano de urbanização: uma avenida asfaltada que constitui um eixo de onde saem artérias secundárias. Um desenho originado nas mesas dos burocratas e dos engenheiros que ignoram o homem e imaginam a urbe como espaço para o trânsito privilegiado dos automóveis. As pequenas vilas sertanejas, essas continuam reféns da sua própria solidão.

sexta-feira, 1 de março de 2013

A igreja dos homens


Os cardeais despediram-se do Papa, um a um, em fila indiana. Solenes, um pouco tristes em face daquele momento, cento e quarenta e quatro príncipes da igreja apresentaram-se diante do único papa que eles viram renunciar. Eram todos homens obrigados ao celibato e não havia nenhuma mulher entre eles.

As igrejas reservam um lugar inferior para as mulheres. As mesquitas, sinagogas, templos católicos, evangélicos ou protestantes, budistas, hinduistas, são todos territórios dominados pelos homens. Esta aparente ginecofobia não estaria entre as causas dos episódios de pedofilia, sexo clandestino e outros escândalos que abalaram o catolicismo?

Os cardeais estavam lá, despedindo-se do Papa. Na enorme Praça de São Pedro, a multidão procurava acompanhar o acontecimento. No meio da multidão estavam muitas freiras. Para elas era proibido aproximar-se para a despedida do líder que desistiu porque não suportou o peso do poder que lhe foi colocado nas mãos.