quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

Um velho e seu cão

O velho caminha torto, inclinado para o lado esquerdo, com as pernas juntas na altura dos joelhos, o que lhe dá uma aparência de fragilidade e desamparo. A seu lado vem um cão amarelo com manchas escuras, as patas traseiras unidas, seu andar reproduz com exatidão o modo de caminhar do velho.

A convivência entre humanos e cães desperta esses curiosos fenômenos de mimetismo. Os bichos adquirem características físicas dos seus donos absorvendo gestos, temperamento, modo de olhar e certos hábitos também. Um cão gordo pertencente a um dono gordo, a cadela empinada copiando  a postura esnobe da sua dona.


Os cães que fazem companhia a crianças são também alegres e irresponsáveis. Enquanto os que pertencem aos solitários ou deprimidos tornam-se silenciosos e introvertidos, na mesma escolha diante da vida compartilhando recolhimento e tristeza.

domingo, 26 de janeiro de 2014

Escritores

Os escritores têm um fantasma que os assombra ao fim de cada livro, de cada texto:  o de terem secado, tornando-se incapazes de voltar a escrever.  O ofício literário é cansativo, um trabalho braçal, se permitida a metáfora. Muitos terminam sua tarefa – romance , conto, poesia – num tal estado de fadiga mental e emocional que chegam a passar muito tempo sem nada produzir.

João Antonio não escondia o mau humor quando lhe cobravam o próximo livro. “’É porque não sabem o trabalho que dá”, dizia. Hemingway tinha tal medo de secar que, dizem, quando realmente secou e teve consciência disso, matou-se com um rifle de caça. Rimbaud, certo dia, ainda muito jovem, parou de escrever e viajou para a África, onde se dedicou a vários negócios estranhos e só voltou para morrer. Mas deixou para trás uma poesia definitiva na literatura mundial.


Talvez por isso o alcoolismo seja tão frequente nos escritores.  Entre tantos outros, os americanos Jack Kerouac, Raymond Chandler, Charles Bukowski, Jack London, Scott Fitzgerald, Edgar Allan Poe, Faulkner e o próprio Hemingway foram todos alcoólatras atormentados por essa estranha maldição.

segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

Turistas

O preço de R$6,90 por um bolinho de bacalhau, no Bar Eclipse, me trouxe a lembrança de Stanislaw Ponte Preta. Ele apontava a vida sacrificada de quem mora numa cidade invadida por turistas. Você paga preços de turista e não é turista. E os restaurantes são ruins porque não têm compromisso com o cliente, que depois viaja, some e não reclama de nada.

Copacabana, invadida pelas hordas, reclama. O mar exibe estresse vomitando ondas de espuma amarela e desde o reveillon suas águas apresentam um colorido suspeito. Alguns dizem que são algas, outros afirmam que se trata de indefinida matéria orgânica. O calor continua batendo os próprios recordes e as tempestades queimaram os dedos do Redentor.


Na esquina da Barata Ribeiro com República do Peru, Marquinhos, o louco da vizinhança, tentava dar ordem ao trânsito caótico. Como os carros não lhe obedeciam, perdeu a paciência. Xingava quem passava a seu lado e os turistas fugiam, intimidados pelos seus olhos arregalados, sua figura feia e pelo ódio formidável que dirigia a todos com suas palavras ininteligíveis.

quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

Ausência

Faz tempo que não os vejo juntos, os quatro velhinhos gays. Costumavam sentar-se no botequim da esquina e nas manhãs de sábado concentravam a atenção na saida do metrô. Deleitavam-se alegremente com a chegada dos jovens que vinham do subúrbio. E trocavam comentários sobre a beleza da juventude que desfilava em direção à praia.

Um deles aparentava estar doente. Muito pálido, apoiado na bengala, mas não parecia disposto a se entregar. Fumava e bebia muito. Outro, bem vestido, elegante, olhava em volta como se estivesse entediado com a mediocridade e a falta de classe de Copacabana. Percebi que na conversa entre eles costumava mencionar lugares de Paris que conhecera quando jovem.


Este ainda está presente nos lugares de antes. Caminha com dificuldade, apoiado ao braço de uma acompanhante e às vezes senta-se a uma mesa do mesmo botequim. Permanece calado e ausente, como se não houvesse ninguém a seu lado, apenas as brumas cinzas que misturam presente e passado na solidão dos velhos.

domingo, 12 de janeiro de 2014

Delírios

Topo com Marquinhos fazendo um discurso no meio da confusão da Barata Ribeiro. Em sua loucura, com sua linguagem indecifrável, ele gesticula e olha fixamente, com expressão muito grave, para algum ponto no horizonte dos edifícios. Acho que consigo compreender algo do que dizia: ”...então eu disse pra ela!...”

Continuo a andar sem saber o que ele teria dito para ela. No seu delírio, falava com alguém, contava algo importante e não se dava conta de nada em seu entorno. Não estava ali, na calçada movimentada  de uma das principais ruas de Copacabana. Refugiava-se na sua vida paralela, movimentada e dura.


Continuei minha caminhada, a essa altura pensando que todos temos nosso mundo interior de fantasias, temores, fantasmas, euforia e de caos que só se revela nos sonhos. Um limite muito tênue nos impede de viver, como Marquinhos, o lado escuro que nega a lucidez do pensamento, que é outra fantasia a nos habitar na turbulenta relação com o mundo tal qual o imaginamos.

quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

No taxi

Entro no taxi e o motorista diz que sou o primeiro passageiro em mais de três horas. Rodava o tempo todo vazio, revoltado, pois ao fim do dia teria de pagar a diária. Às vezes trabalhava o dia inteiro só para pagar essa diária. E os passageiros rareavam.

Depois disse que era formado em administração de empresas, tinha sido gerente de banco até ser demitido, há dois anos. Não tinha conseguido se recolocar. E o trânsito da cidade estava cada dia pior, miserável, desumano.


Tem uma filha portadora de deficiência, ela precisa de tratamento e cuidados e os hospitais públicos estão abandonados, nem médico bate ponto neles. E disse que às vezes dá vontade de quebrar tudo. Pedi que parasse na esquina, paguei acima do que marcava o taxímetro, entrei no botequim e pedi uma bebida forte.