quarta-feira, 28 de maio de 2014

A teia

Debatendo-se, o inseto tenta escapar da teia mas seus movimentos afundam-se na inutilidade enquanto a aranha avança. Ela não tem pressa e cada um dos seus passos parece calculado para aumentar o desespero de sua presa. O pequeno inseto parece não querer desistir e luta na busca da liberdade que pode estar muito próxima, talvez no movimento seguinte que poderia libertá-lo da teia pegajosa.

A luta intensa contra os fios que, a cada movimento, parecem fortalecer-se em torno do seu corpo, estão cansando o prisioneiro. Ele tenta desvencilhar a cabeça, depois as pernas, enrola-se em outros fios e por um momento parece desistir mas retoma a luta cada vez mais desesperada enquanto a aranha, lentamente, avança.


Ela, a aranha, interrompe por um momento sua lenta caminhada, como se fizesse uma parada para contemplar o inseto enrolado em sua teia. Depois torna a avançar, muito devagar, como se antecipasse o prazer que a espera. O pequeno prisioneiro, então, interrompe a luta e se entrega a seu destino.

sexta-feira, 23 de maio de 2014

A música

Os sons, mais do que os perfumes, despertam em nós a memória do passado. Napoleão Bonaparte dizia que não diferenciava a música de outro barulho qualquer, mas ela nos conduz no roteiro da imaginação. O funcionamento das emoções, que desafia as funções químicas do cérebro, nunca foi traduzido pela ciência mas há na música uma transcendência de sentidos que se encontra alem do entendimento e da lógica.

Os sons organizados da música são capazes de nos guiar até um nível próximo da consciência, com o poder de redimir sentimentos. Arrependimentos tardios, perdas ou celebrações, abismos, glória e alegria são transformados na abstração de uma forte linguagem através de cordas, sopros, toques, reverberações.


Sons que nos conduzem à consciência e ao entendimento dos desvãos da alma, do reencontro com algo que foi perdido em algum lugar, em algum momento que não imaginamos onde nem sabemos quando.

domingo, 18 de maio de 2014

Piaba

Há muitos anos, há distantes, longos anos, quando todos ainda estávamos vivos, sentávamos às margens do Capibaribe e, noite a dentro, procurávamos entender o mundo. Em nossa volta juntavam-se meninos de rua, pequenos delinquentes que viviam de pequenos furtos mas que não nos incomodavam.

O líder desses meninos – Piaba – ganhou o apelido pela técnica de pular no rio e nadar rapidamente até a outra margem quando a polícia o perseguia. Contou que só conseguiram lhe prender uma única vez mas fugiu do reformatório na primeira semana e voltou para as margens do rio e para as ruas do Recife.


Uma noite discutíamos o valor das coisas e um dos amigos revelou estar juntando algum dinheiro para uma caneta Parker 51. Na noite seguinte, recebeu de Piaba uma de presente. Não quis aceitar, mandou que fosse devolvida de onde viera e, mais uma noite depois, Piaba informou que tinha vendido a caneta e podia nos pagar uma cerveja.

quarta-feira, 14 de maio de 2014

Abatedouros

Há uma tristeza nos animais que os aproxima dos humanos. Os gatos e os cães revelam estados depressivos ou eufóricos e reagem diante do que observam em diferentes estados emocionais. Uma ovelha mostra evidente desespero nos momentos que antecedem sua morte. Os guinchos dos porcos que vão ser abatidos, o pavor das reses na chegada aos matadouros, todas são mensagens de horror que os homens se esforçam por ignorar.

A relação humana com os bichos assemelha-se ao tratamento que se dava aos escravos não tanto antigamente. São vistos como propriedade de alguém, coisas semoventes, força de trabalho. A escravização dos animais começou com a sua domesticação para fornecimento de proteínas e o homem se colocou no vértice da cadeia alimentar.


As grandes empresas de alimentos, os grandes frigoríficos e os seus matadouros auto-denominam-se processadores de proteínas. O eufemismo afasta o entendimento. Poderosos empresários, executivos com talento e sofisticada formação universitária odiariam ser chamados açougueiros ou mercadores da morte.

sábado, 10 de maio de 2014

Crepúsculo

No lançamento de um de seus livros, Jorge Luis Borges escreveu na dedicatória para uma adolescente que a ela dedicava não o exemplar em suas mãos, mas um certo por de sol que havia contemplado muitos anos antes de ela ter nascido. Borges dizia, a sua maneira, que aquela menina merecia algo que fosse mais belo do que seus poemas.

Numa outra ocasião, ele disse que o crepúsculo é uma alucinação “que impõe ao espaço o medo unânime da sombra”.  Pois quando o sol se põe, ou se deita, como dizem os franceses, dá-se o fim de um dia e as trevas começam a substituir a luz. A noite foi em todos os tempos a hospedagem do medo.


Mas o momento marcado pelas cores vibrantes que vão se acalmando encanta  pela força da sua beleza repetida em cada desmaiar do dia. Mesmo que simbolize também um instante de pressentimentos sombrios, quando os enfermos costumam temer a morte na percepção de que a luz desaparece e em seu lugar vai prevalecer a escuridão.

terça-feira, 6 de maio de 2014

A Arte

Malraux disse que toda arte é uma revolta contra o destino do homem. E Woody Allen, em uma de suas tiradas, diz que a vida não imita a arte, como queria Oscar Wilde, mas imita, sim, os maus programas da TV. Na discussão infinita sobre a utilidade da arte, nem sempre prevalece a razão, pois ela é uma expressão da loucura humana evitando que os homens enlouqueçam.

Perguntar a qualquer artista por que ele escreve, pinta, compõe, esculpe, enfim, por que exerce sua arte, ele dirá que não conseguiria viver se não o fizesse. Alguns dirão que é para não enlouquecer. A presença da loucura, além de vícios que sinalizam desequilíbrios emocionais, têm sido constantes na história dos artistas.


Alcoolismo, ópio, haxixe, heroína e outras drogas pesadas não estão longe do seu universo e da sua revolta contra o destino do homem. Muitas vezes apenas a arte não basta como ato de coragem capaz de transcender a condição humana. A impotência do artista diante de sua própria arte é a sua condenação.