sábado, 29 de novembro de 2014

Fim de ano

Copacabana prepara-se para comemorar o fim de mais um ano. Com seus contrastes, tumulto, a soma dos seus crimes e mau comportamento. O verão também se aproxima, o sol ainda não caprichou na força dos seus raios mas já se vê pelas ruas o branco dos turistas estrangeiros que nesta época aparecem em busca de calor.

O bairro alegre prepara-se para a saudação espetacular do ano novo com milhões de pessoas pela praia e o detonar das girandas de fogos. As religiões africanas arrumam suas flores e seus barquinhos de Iemanjá. O bairro triste se tranca nos pequenos apartamentos em que se abrigam os velhos que buscam a tranquilidade inexistente.


Já se enchem os botequins, bandos de jovens juntam-se em rituais de acasalamento e meninos favelados preparam seus arrastões e suas táticas para fugir dos policiais. Como faz todos os anos, Copacabana se prepara para o tempo maior da sua vocação de festa, tumultos, miséria, alegria e caos.

terça-feira, 25 de novembro de 2014

o século

O século 20 foi muito curto. Durou apenas setenta e três anos. Começou em 1918, com o fim da Primeira Guerra, que enterrou o romantismo da “belle époque” e os valores do século anterior. Terminou com o desmanche da União Soviética, em 1991. Deu lugar a um tempo sem a ameaça de conflitos mundiais porem a paz continuou a ser um sonho de nefelibatas.

Os anos 1900 criaram e deram sentido à palavra genocídio e viram a tecnologia promover destruições em massa. Foram os anos em que floresceram o nazi-fascismo e os crimes praticados pelos regimes comunistas que se corromperam. Foi a época sombria em que nascemos, os da minha geração que ainda estamos vivos.


O século atual não será menos infeliz, apesar das conquistas da ciência avançando mais rápida que a humanidade. Os fundamentalismos de toda espécie, os conflitos entre culturas, povos e civilizações, crueldade e ódio, êxodo e fome estão se afirmando como a marca do século 21, que está apenas começando.

sexta-feira, 21 de novembro de 2014

A caça

Entre tantas culpas que talvez me levem ao inferno, uma que de vez em quando me assalta é a do dia em que matei uma pequena ave que pastava na floresta às margens do Araguaia: uma galinhola, como a chamam na região, um inhambu, como a chamavam os da minha terra. Uma violência contra uma ave tranquila.

Armado para a caçada, fiz o disparo fatal. E mais tarde a comemos, nós os da expedição de pesca transformados por uma breve manhã em caçadores. Pensei na cena em que ela foi morta – distraída e tranquila no meio da verde vegetação da margem do rio. Mas o arrependimento não foi bastante para inibir o prazer de saciar a fome com a sua carne.


Pois para isto fomos feitos, animais que sobrevivemos desde o amanhecer da existência com a morte de outros seres vivos. Domesticamos aves e bichos para devorá-los, dividimos sua carne em pedaços que não possuem sequer a memória dos seus corpos. E amamos pensar que somos diferentes dos outros predadores ferozes dessa estranha natureza que habitamos.

terça-feira, 18 de novembro de 2014

A tarde


O menino investigava a tarde
e o silvo das locomotivas avisava:
o pai chegava, ia escutá-lo,
ouvir a sua voz e seu silêncio.

Os míticos lugares, as distâncias,
tudo emoldurava um por-de-sol chuvoso,
cortado de andorinhas,
acentuando o desmaiar do dia.

A terra, parto de segredos,
despertava com as nuvens carregadas,
com os sapos, os insetos, plantas
e o verde em brilho dos canaviais.

A voz dos violeiros, o cantar dos carros
e o odor dos últimos engenhos
misturavam cheiro e música, chuva e vento,
aos olhos do menino que esperava.


sexta-feira, 14 de novembro de 2014

O contrato


O pacto com Satanaz, uma das lendas mais antigas do Ocidente, enriqueceu os mitos humanos e inspirou Fausto, a obra prima de Johann Wolfgang von Goethe, maior poeta de língua alemã. Mas o medo do inferno não afastou ao longo do tempo os pretendentes a esse trágico contrato no qual o homem entrega sua alma em troca de poder, fortuna e sucesso na vida.

Muitos, como o personagem do poeta alemão, quando descobrem o amor tentam desfazer a promessa feita a Mefistófeles mas já será muito tarde. A cobrança não deixará de ser feita pois tudo o que fora prometido foi entregue em poder, fortuna e sucesso mas o amor estava fora do acordo. Outros poetas exploraram o tema, como Pushkin, Valéry e Fernando Pessoa.


O poema de Goethe levou sessenta anos para ser escrito e mesmo assim não foi considerado pronto pelo autor. É uma das obras eternas da literatura porque na vida são muitos os que aceitam fazer o contrato e, quando tentam desfazê-lo, sua alma já é refém e estará para sempre acorrentada às trevas.

segunda-feira, 10 de novembro de 2014

SRD

Ela tem poucos meses de vida e vai ocupando os espaços da casa. A lembrança da outra ainda não se dissipou e às vezes me faz chamá-la pelo nome da que morreu. Mas não se intimida, pula no colo, interrompe minha leitura, pisa no teclado do computador a me dizer que está presente, ali mesmo, e me olha desafiadoramente.

Acompanha-me quando me levanto, entrelaça-se entre minhas pernas, arrisca-se a um acidente, pois posso pisá-la, ela pode me provocar um tropeço e queda. Cresce pelo milagre da comida. Sua cauda ganha corpo, torna-se peluda como a dos angorás, revela a mistura de raças de uma espécie mestiça, independente e misteriosa. Em sua identidade veterinária está escrito SRD, ou seja, sem raça definida


Aprendeu a pedir comida, seus frágeis miados já ganharam diferentes tons, cada um deles significa uma mensagem determinada. Um desses miados me impressiona. É quando ela olha com profunda atenção para dentro dos meus olhos e procura me dizer algo que não consigo entender mas finjo que compreendo, acaricio seu pelo e então ela fecha os olhos e finge que está dormindo.