domingo, 24 de setembro de 2017

Deus


Há muitas gerações o homem vive na crença de que existem o Bem e o Mal. A vida seria a eterna luta entre essas forças que se contradizem e se destroem. E o destino do mundo garantiria ao fim a vitória do Bem. Assim professam as religiões, anunciam as Escrituras e é por esses caminhos que os crentes percorrem a jornada da vida.

A humanidade tem no entanto assistido a conflitos em que só consegue identificar a presença do Mal, suas sombras, pranto, miséria e fome. E começa a desconfiar das promessas de vitória do Bem. Deus, que garantiria o destino sagrado do homem, invocado em todas as esperanças, teria falhado. Nas trevas de Auschwitz, estava escrito numa parede: se existe um Deus, ele haverá de implorar pelo meu perdão.

No sofrimento de tempos negros, o homem duvida de Deus. Nada garante ou afirma sua existência. E Deus é o último refúgio negado antes do mergulho no inferno da desesperança.



quinta-feira, 14 de setembro de 2017

O primo tranquilo


Silencioso e calmo, um disfarçado sorriso nos lábios e o olhar tímido porem sincero, era meu primo e poucos anos depois seria médico. Enquanto nós, os outros, dedicávamos o tempo na noite e dela nos embriagávamos, ele permanecia fechado no quarto da pensão de Recife e estudava. Ria seu riso tímido quando ouvia as histórias da nossa boemia irresponsável. E se recusava a participar da vida que vivíamos.

A cidade era tranquila, naquele tempo. O Capibaribe percorria seu caminho até o mar e dividia em duas a paisagem que achávamos a mais bela do mundo. Nas suas margens, pela madrugada silenciosa, passeávamos nossa inquietação e dizíamos poemas que traduziam os segredos da noite em que mergulhávamos.


Quando terminou o curso mudou-se para sua cidade no interior, foi um bom médico, silencioso e sábio. Tive dele poucas notícias e nunca consegui entender a angústia que o levou ao suicídio. Em sua forma calma de viver, escondeu o conflito interior que acabou por mata-lo. Há um mistério nos suicidas que os sobreviventes nunca haverão de compreender.

sábado, 9 de setembro de 2017

Visita


Uma brisa suave lembrava o sopro de coisas mortas em repouso, como lembrança da vida que ali tinha existido antigamente. De tão leve, era incapaz de levantar a poeira finíssima que quase cobria os móveis e os objetos de uma casa que um dia fora banhada de ventania. Depois, na calma que viera, nada se movia, apenas o pó suspenso pelo ar das frestas obscuras.

Nessas paragens quietas, insetos lembravam gotas d’água, viam-se nuvens construindo um céu de chumbo e a pouca luz montava a moldura de retratos improváveis. A sombra esmaecia restos sem brilho, breve claridade fria como o vento de um país gelado.

Lá, nessas paragens estranhas, uma criança crescia e olhava em sua volta, procurava enxergar além desse horizonte de chumbo e descansava a cabeça numa pedra escurecida. Como se fosse apenas um reflexo, uma réstia dessa luz perdida que se pode encontrar em paredes desenhadas pelo tempo.